Noite! Céu de brigadeiro,
Arco admirava a luminosa via que se nos apresenta anualmente levemente
modificada, precisamente pela Precessão dos Equinócios
.*
Em conjecturas, absorto
estava, até que Beethoven com seus estrepitosos latidos o subtraísse do seu
êxtase. Olhou para sua esquerda e nada;
olhou para sua direita e identificou o motivo de tanto alarido.
Em sua direção caminhava um
jovem senhor de aproximadamente trinta e cinco anos, cabelos revoltos, bigode
fino, rosto sem maiores traços que pudesse levar alguém a fazer uma leitura se
de feio ou bonito, deixando esta para que o sentimento em outro momento
qualquer pudesse determiná-lo; media seu corpo 1,67 mt., já com adição dos
saltos das botas; vestia calça de brim claro, camiseta de meia branca escondida
pelo blusão em cor clara do mesmo tecido da calça; botas gastas, totalmente
empoeiradas e descoloridas, permitiam inferir-se o tempo de uso.
Achegou-se mais:
-
Boa noite, meu senhor!
-
Boa noite, meu jovem... Em que lhe posso ser útil?
-
Não preciso de dinheiro, pois descobri que este não vale nada! –
exclamou. – viajo e estou morrendo de fome. Dê-me comida...
-
Mas... Há esta hora? O que posso te arranjar é pão com manteiga e
café...
-
Até pão seco com água, senhor.
Arco, pela resposta do visitante sentiu a fome sentida. Adentrou seu
lar, olhou a mesa daqui, a geladeira dalí e sem saber o que fazer buscou ajuda
na esposa.
Coração maior que a pátria, aquela que exatamente a vinte e dois anos
lhe consorcia as emoções, fritou dois ovos na manteiga, adicionando-os a uma
sobra do jantar, - porção de macarrão, - misturou esse com farinha, (que nenhum
italiano leia isso) colocou algumas rodelas de cebola e em suas mãos
entregou-lhe o prato.
-
Sinto, mas a essa hora da noite – era àquela hora 23h20min. - é o que
posso te oferecer...
-
Moço, isso é um banquete! – exclamou. Seria possível o senhor me
arranjar um pouco d’água?
-
Pois não.
Enquanto matava a fome:
-
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Moço, estou vindo do inferno! Dez de Janeiro deste ano,
depois de ter passado o feliz susto do mundo não ter se acabado, pensava em
refazer minha vida em outro lugar, já que em Humildes, emprego é bem difícil.
Aí, neste instante apareceu um homem me parecendo digno, e, me propôs levar
juntamente com mais vinte, para a colheita da cana de açúcar em Mato Grosso do
Sul. Quando se sente fome, moço, ou se rouba ou se agarra a primeira
oportunidade. Opto sempre pela segunda hipótese. Graças a Deus, - pensei – me
aparece um trabalho. Mulher! Fica com a nossa filha que vou buscar melhoras.
Choros e lágrimas não faltaram na despedida. Tomei essa mochila emprestada de
um amigo, e enchi de trapos: alpercatas, shorts, duas mudas de calças e camisas
velhas para a labuta. A melhor levei no corpo, e, agora a trago. Na partida meu
coração doeu demais, porque não podia levar Dorinha e Ritinha. É o nome de
minha mulher e minha filha, moço! Depois de juntar todo mundo, como se junta um
magote de bois, fez-nos o homem, subir numa carreta boiadeiro e lá fomos nós
rumo à melhora. Não nego que a princípio estranhei aquela forma de se
transportar gente, contudo, ‘’os tempos mudam’’. – imaginei. Cinco horas mais
vinte minutos da tarde do dia quatorze deste mesmo mês, a porteira da fazenda
se fechou atras de nós. Por entre viçoso canavial, pungente percurso consumiu
mais uma hora e trinta minutos. Assim, faltando dez minutos para as sete horas
daquela noite enluarada, fincamos os pés em nosso eldorado. Foi a última vez
que vi aquele bom homem que me dera emprego. Na oportunidade disse àquele outro
que nos recebeu... – esta aí a
quantidade pedida! – Gentilmente, o gerente do latifúndio nos depositou a
todos em fétidos quartinhos. Dormimos como chegamos. Quem precisa se alimentar,
o gentil senhor que nos deu emprego e nos trouxe de carreta já não houvera dado
um pão com um copo de refresco de maracujá a cada um, ao meio dia? Pra que esse
luxo de se alimentar mais de uma vez por dia? Utilizei-me deste artifício
psíquico para me enganar. Cinco da madrugada do dia quinze, agudíssima sirene
tirou-nos a todos do sono lenificador. Hora do café! – anunciou alguém. Quando
chegamos a grande salão, usado para refeitório, lá estava o nosso café que
deveria nos sustentar naquela primeira manhã de trabalho. Um pão de milho, de
aproximadamente trinta gramas. Não se apoquente rapaz! Com esta caneca de leite
de soja de aproximadamente duzentos mililitros, este pão de trinta gramas,
pesará em teu estômago, umas cem. Outro recurso psíquico usado. Deu certo.
Naquela primeira manhã, trabalhamos até 12h10min, até quando o mesmo ‘’pau de
arara’’ que nos tinha conduzido, nos levou de volta à sede. Almoçamos pequena
porção de feijão, farinha e uma buchada de sei lá o que, temperada com bastante
banha. Como o dia quinze foi um dia de Sábado, imaginei que os víveres da
fazenda tinham ficado escassos e o gerente deveria ir à cidade mais próxima
comprar o necessário para prover a dispensa. Voltamos ao trabalho exatamente às
13h30min, e cumprimos jornada neste turno até se completar o ocaso. Quando do
retorno, isso por volta das 19h00min, nos deparamos com a mesa do café posta,
com o mesmo cardápio do meio dia. Tudo que usávamos naquele ‘’paraíso’’ nos era
cobrada módica quantia. Por exemplo: se alguém quisesse comprar na venda - que
ficava a quinhentos metros afastados da sede da fazenda, mas que era do
proprietário, - carne bovina, porque estava enjoado de comer a mesma coisa,
teria que pagar quinze reais por um quilo. O generoso dono do latifúndio
mandava nos pagar, quatro reais por dia. Quer dizer: trabalhávamos quatro dias,
para adquirirmos um quilo de carne. Nada mal, com isso ele nos ensina a arte da
economia. – pensei. O mês de janeiro findou-se. Veio fevereiro, março, abril e,
o nosso viver era esse horrível cotidiano: acordar as cinco; leite de soja com
pão de milho no café; almoçar buchada com banha e trabalhar igual a bicho.
Sábado, domingo, feriado nada disso existia para nós. Um dia, acusaram um
colega nosso de ter roubado na venda, pequeno pedaço de rolo de fumo. Moço,
bateram tanto neste homem, que depois disso não conseguimos mais vê-lo. Deve
ter voltado pra casa. – Quis me enganar mais uma vez. Joãozinho, um jovem rapaz de dezoito anos,
morador da cidade de Morro do Chapéu, que nos acompanhara, certa noite não aguentando mais, fez-me seu pai, deitou sua cabeça em meu colo buscando
proteção e disse-me: Chico, estamos presos. Isso é o que se chama de trabalho
escravo. Vamos fugir! Como meu filho, se
a cerca da fazenda é toda eletrificada? Se tentarmos, morreremos. Certo dia, o
ronco de um bi-motor, chamou-nos atenção e, olhamos todos para o céu. Neste
instante, Joãozinho gritou, tomara que seja o avião trazendo a Imprensa que,
levada por denuncia qualquer, esteja vindo fazer uma reportagem. Bobagem
garoto! - Gritou um dos mais velhos que alí já encontramos. – É o doutor
deputado federal dono disso tudo, passa sempre pelo alto, para com sua
‘’humanidade’’ não se apiedar de nossa desdita. Em número de oito, nos reunimos
resolvidos que iríamos fugir, pois, se lá ficássemos morreríamos de qualquer
jeito. Assim, às doze horas do dia 29 de agosto deste ano de 2000, determinado
colega, munido de uma luva plástica, meteu a mão na caixa de força e desarmou a
rede. Fugimos os oito. Dormimos na mata, em cima de árvore fugindo de onças e
outros bichos. Joãozinho? Esse já se encontra com os seus pais na cidade de
Morro do Chapéu. Deixei-o lá, ontem, dia cinco de setembro de 2000. Moço,
depois de tudo que vivi, não posso deixar de agradecer a Deus por duas coisas.
A primeira delas, é encontrar-me frente a um justo homem como o senhor e a
segunda, é a certeza que no máximo amanhã estarei em Humildes abraçando minha
Dorinha e minha Ritinha. Obrigado pelo banquete!
Arco recebeu
das mãos do viajor, o copo e o prato limpo e depois de esperar sua saída antes
de adentrar sua casa, volveu o olhar para o céu de brigadeiro, talvez
inconscientemente fugindo de buscar entender a espécie humana, enquanto dizia:
-
Entremos Beethoven!
Antonio Rey.